O dia 18 de maio marca o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. A origem do movimento remete à organização de uma classe de trabalhadores: o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Ao final dos anos 70, fortemente influenciados pela vinda ao Brasil de acadêmicos e militantes, como Franco Basaglia e Robert Castel, trabalhadores da saúde mental passaram a se organizar por melhorias nos locais de trabalho e nas formas de cuidado utilizadas. Todavia, é em 1987, no Encontro de Bauru (II Congresso Nacional do MTSM), que ocorreram duas viradas decisivas que fundam o movimento antimanicomial como conhecemos: a) a mudança da composição, deixando de ser um movimento apenas daqueles profissionalizados para atuar na saúde mental e passando a incluir os próprios loucos, seus familiares e ativistas dos direitos humanos; b) a mudança de objetivo, antes limitado à melhoria do sistema e combate às técnicas violentas, que passa a pautar o fim de todas as instituições e concepções manicomiais.
O documentário Em nome da razão (1979), produzido por Helvécio Ratton, é um referencial interessante para entender a função do manicômio. O critério de produtividade é fundante da classificação da loucura e seu controle nas sociedades capitalistas. O manicômio aparece como um grande depósito para sujeitos improdutivos, desviantes, crianças e adultos com deficiência e LGBTs (com “homossexualismo” constando em suas fichas médicas). As colônias eram ainda um bom destino para esposas cujo marido desejava abandonar ou desafetos políticos. Nas imagens do filme, não passa despercebida a quantidade de corpos negros encarcerados nos muros do Hospital Colônia de Barbacena.
A luta pelo fim dos manicômios não focaliza apenas a institucionalização física, mas o combate à lógica manicomial que categoriza, segrega e retira a condição de sujeito de certas parcelas da população. A dominação da loucura passou e ainda passa por constantes atualizações, marcadas por pressupostos científicos e de humanização. Se prender alguém e arrancar-lhe os dentes não é socialmente aceitável, a criação de novos diagnósticos e medicações que garantam o comportamento adequado e produtivo são. Trata-se de uma lógica impossível de ser completamente subvertida dentro do capitalismo.
O Brasil passou por uma Reforma Psiquiátrica, que embora formalizada pela Lei 10.216/2001, começou anteriormente e foi influenciada pelos processos de redemocratização. A Reforma Psiquiátrica Brasileira nunca foi concluída e está em constante disputa, sendo seus pontos mais sensíveis aqueles que fazem intersecção com o cárcere e a política de drogas: a figura do doente mental é mais humanizável do que a do criminoso ou a do usuário de drogas ilícitas, moralmente condenáveis. Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (manicômios judiciários) e Unidades Experimentais de Saúde seguem abertos, bem como verba pública segue sendo investida em Comunidades Terapêuticas, serviços proibicionistas, normalmente vinculados a instituições religiosas e com denúncias de tortura, violações de direitos e mortes.
A catástrofe climática sob a ótica antimanicomial: uma necessidade
A lógica manicomial é especialista em ocultar desigualdades e fundar no próprio indivíduo a origem e a solução para seu sofrimento. As catástrofes climáticas, como as recentes enchentes no Rio Grande do Sul, geram incontestáveis impactos à saúde mental dos atingidos: pessoas que perderam suas casas, fontes de renda, familiares e amigos queridos, vivenciaram momentos traumáticos ou mesmo perderam a referência tinham do local que habitavam. Tragédias climáticas colocam para o movimento antimanicomial atravessamentos que até então não eram considerados.
A crise climática é indissociável do modelo de produção capitalista e, de forma análoga, são os impactos gerados por ela. O ideal é evitar catástrofes climáticas sob a alternativa civilizatória radical do ecossocialismo. Mas, neste cenário onde a tragédia já é realidade, como vamos lidar com os impactos psicossociais da enchente? Encarando o sofrimento como individual ou localizando-o no bojo da conjuntura? Atribuindo diagnósticos que deem conta de calar qualquer discussão ou articulando estes diagnósticos ao contexto em que surgem? Medicando para que os sintomas gerados pela tragédia climática sejam suprimidos ou utilizando estratégias de cuidado que podem incluir a medicalização, mas que deem conta da complexidade dos fenômenos?
Não podemos nos deixar seduzir pela patologização dos atingidos por essas e outras tragédias. Em um mundo em colapso, se faz necessário mais do que nunca construir em rede, sem focalizar “vivências internas” desconectadas do social, um dos aspectos fundamentais da luta antimanicomial. A concepção de saúde em sua integralidade, considerando elementos como condições de alimentação, trabalho e lazer, exige organização contra as catástrofes climáticas, bem como a resposta às catástrofes climáticas exige que não nos isolemos em uma única intervenção ou pauta. Sigamos construindo um futuro ecossocialista, antirracista, abolicionista, feminista, antiLGBTfóbico e antimanicomial.
Loucura não se prende, saúde não se vende!
Nenhum passo atrás, manicômios nunca mais!
Anna Beatriz Lousa é militante da Rebelião Ecossocialista, do Ecoar - Juventude Ecossocialista, psicóloga, pesquisadora e educadora popular
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