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Vanessa Monteiro

Como a esquerda brasileira morre

Publicação original em Passa Palavra


Este texto toma como ponto de partida a morte da esquerda [1]. A ideia, anunciada nos últimos quatro anos por Vladimir Safatle, gerou, mais do que polêmicas, reações defensivas por parte da esquerda que se sentiu afrontada por tal afirmação. A despeito de ativistas que sinceramente passaram a se questionar se seus esforços heróicos de intervenção na luta de classes estavam sendo desconsiderados, algumas das críticas chamaram atenção por reafirmar o diagnóstico, como a ideia de que a esquerda está viva “porque ganhou quatro eleições presidenciais seguidas desde 2002, e confirmou que preservava autoridade levando a candidatura Lula ao segundo turno em 2022” [2].


Não entenderam, ou não quiseram entender, que a ideia de morte da esquerda não vem do fato de a esquerda disputar ou não eleições, intervir ou não na realidade, mas pelo seu reducionismo de horizontes. Como diz Safatle, a esquerda morreu como esquerda ao ter se demonstrado incapaz de cumprir o seu papel histórico e apresentar uma saída radical frente à emergência climática e ao colapso político-social, deixando ao fascismo o espaço antissistêmico, a disputa programática e a capacidade de ação sobre o povo.


A morte da esquerda se dá não como uma abstração conceitual, mas como um processo real e historicamente localizado. Por isso, optei por escrever este texto, elaborando sobre os motivos que me levaram a um novo rumo na militância revolucionária, enquadrando a crise da Resistência [corrente do PSOL] como um caso exemplar da encruzilhada na qual a esquerda radical se encontra hoje.


Passados cinco anos desde a fundação da Resistência, é nítida a profunda transformação pela qual passou o agrupamento rumo à institucionalização. O projeto que deu origem à Resistência já não existe mais e seu fim não pode ser compreendido como um fenômeno isolado. Assim, entendo que esse debate se justifica pelo fato de que as diferenças político-programáticas sobre os rumos dessa corrente não são patrimônio singular, mas partem de debates vivos que atravessam os movimentos sociais, organizações revolucionárias e a intelectualidade de esquerda, dada a complexidade da situação em que vivemos. Em segundo lugar, porque tratar as diferenças políticas de maneira franca e aberta é pedagógico em meio a tantas rupturas e fragmentações mal-explicadas ou, ainda pior, silenciosas. Nada mais anti-leninista do que sucumbir à idéia de que a polêmica pública é nociva [3].


Sobre as origens e posições fundacionais


A Resistência é uma corrente de origem trotskista, fruto principalmente da fusão entre as antigas correntes MAIS (Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista) e NOS (Nova Organização Socialista). O MAIS surge em julho de 2016 a partir da ruptura de 739 militantes com o PSTU, que convocaram através do manifesto “É preciso arrancar alegria ao futuro” [4] a conformação de uma nova organização socialista e revolucionária no Brasil. O acontecimento foi um fato político que gerou enorme repercussão na esquerda àquela época. A NOS, apesar de menor em tamanho, reunia uma importante camada de intelectuais e militantes marxistas, com peso em particular no estado do Rio de Janeiro, em um momento em que a esquerda carioca era bastante dinâmica [5]. A fusão destas duas correntes deu origem à Resistência, em 2018, que no mesmo ano formalizou sua entrada no PSOL. A nova corrente surge com um expressivo trabalho sindical, de juventude e uma porção de quadros pertencentes à velha guarda do trotskismo brasileiro, fundadores da Convergência Socialista e do Partido dos Trabalhadores.


Para aqueles que, assim como eu, vieram do ex-MAIS havia grande expectativa na construção de uma nova corrente revolucionária não dogmática, capaz de incidir positivamente na luta contra a fragmentação dos revolucionários a partir da necessidade de enfrentar a ascensão da extrema direita sem abrir mão da construção de uma alternativa anticapitalista. A publicação do manifesto de lançamento do ex-MAIS no antigo Blog Convergência, se deu nos seguintes termos: “A iniciativa busca uma unidade superior da esquerda que se movimenta no sentido da luta pela superação do capitalismo, e, no Brasil, pela conformação de um terceiro campo, alternativo às velhas e novas direitas e à coalizão que deu suporte aos governos do PT” [6].


No manifesto é possível encontrar as principais ideias que nortearam a ruptura com a antiga organização, bem como os pilares fundacionais que marcaram o perfil programático daquele agrupamento. Corretamente, o ex-MAIS interpretava que a restauração capitalista na URSS, leste europeu, sudeste asiático e Cuba teve signo reacionário, o que explica a ausência de revoluções triunfantes no século XXI, fruto do retrocesso político e organizativo que abateu a classe trabalhadora:


A ofensiva política, econômica, social, militar e ideológica do imperialismo, os discursos sobre “o fim da história” e a adaptação da esquerda reformista à ordem burguesa não passaram sem consequências. O movimento de massas retrocedeu em sua consciência e organização. E os revolucionários sofreram os efeitos desses anos de confusão e crise [7].


Sem catastrofismos, apontamos que a história não acabou e “a crise econômica mundial de 2007-2008 abriu uma nova situação internacional marcada pela instabilidade e pela polarização política, social e militar” (grifos meus) [8]. Neste contexto altamente contraditório, marcado tanto pela ascensão da extrema direita quanto de partidos neo-reformistas, alavancados por fenômenos progressivos de mobilização social, compreendemos a tarefa de atuar diante de uma “nova situação mundial [que] abre importantes perspectivas aos socialistas” [9] mas sem autoproclamação, único caminho possível para romper com a marginalidade.


Como foi público, a posição categoricamente contrária ao golpe de 2016 esteve no centro da identidade política daquele agrupamento, por entender que — fazendo certa analogia com o signo na restauração capitalista — a queda do governo do PT não se deu pela ação das massas, uma superação pela esquerda, mas sim pela oposição de direita. Este elemento subjetivo foi determinante para compreender o signo de reação e a necessidade de “construir a mais ampla unidade de ação com todos os setores que estivessem na oposição de esquerda ao governo e, se possível, dar a esta unidade uma forma organizativa: uma frente de luta ou terceiro campo alternativo ao governo [do PT] e à oposição de direita” [10].


O manifesto que deu origem ao ex-MAIS é muito feliz em expressar o sentimento que deu origem àquele agrupamento, que reunia uma parcela expressiva de quadros jovens referenciados no trotskismo latino-americano, inquietos pela necessidade de responder às crises do período histórico em que vivemos, incluindo-nos a nós mesmos como parte do cenário de fragmentação e marginalidade dos marxistas revolucionários. A aposta na unidade das organizações da esquerda combativa orientava o manifesto, seja no terreno da intervenção sobre o movimento de massas ou nas eleições de 2016, com o chamado a uma Frente de Esquerda Socialista [11]. O espírito daquele texto, tal qual o lançamento da corrente no Clube Homs, em São Paulo, mirava o futuro e negava qualquer tentativa de reedição do passado:


Rejeitamos qualquer tentativa de reeditar, trinta anos depois, a experiência reformista do PT, como faz hoje a direção majoritária do PSOL. A redução da luta de classes à luta parlamentar, as alianças com os setores supostamente progressivos da burguesia nacional, a transformação dos deputados, senadores e prefeitos em figuras todo-poderosas, que só devem satisfações a si mesmos – tudo isso já foi feito. E fracassou. Não trilharemos este caminho. (Manifesto “É preciso arrancar alegria ao futuro”, grifos meus).

Ascensão do neofascismo no mundo e a política dos revolucionários


De julho de 2016 a abril de 2018 se aprofundaram os elementos mais reacionários da realidade, tendo importante impacto na situação política mundial a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos em 2017 e sua influência para a ascensão da nova extrema direita no mundo. No Brasil, a força política de Bolsonaro apontava para o que viria ser, ao final daquele ano, sua vitória eleitoral e o início de uma experiência catastrófica, sobretudo aos mais pobres. O manifesto aprovado no Congresso de fusão NOS-MAIS [12] estava imerso em um espírito defensivo (“vivemos tempos de muros e medos”). A diferença com o manifesto “É preciso arrancar alegria ao futuro” que deu origem ao ex-Movimento Por Uma Alternativa Independente e Socialista se dava não apenas em termos de nome – dado que a análise de correlação de forças entre as classes se tornou parte da identidade política do agrupamento, assumindo um caráter reativo desde o seu nome: Resistência – mas também em termos de tarefas e perfil. “Resistir no presente” ganha mais peso, ainda que conste a necessidade de “um programa radicalmente anticapitalista”; a ideia de terceiro campo ou unidade da esquerda radical desaparece, dando lugar a formulação mais ampla de “construir frentes de lutas unitárias”. Ao mesmo tempo, se mantém a necessidade de superação da estratégia de conciliação de classes:


No entanto, essa disposição de unidade para lutar em torno de objetivos de resistência, centrais nessa conjuntura de retrocessos, não nos levará a aceitar o abraço dos afogados dos que insistem na conciliação de classes. A classe trabalhadora brasileira necessita de uma outra esquerda, que não tenha medo de expor suas convicções socialistas e seu programa radical de ruptura com a ordem burguesa. (Manifesto É tempo de resistência! É preciso transformar a vida para cantá-la em seguida)

Antes de avançar para uma demonstração de como evoluíram as posições da Resistência nos últimos anos, é importante uma rápida localização de como interpretamos a ascensão da extrema direita, um fenômeno decisivo do nosso tempo e que se desenvolveu qualitativamente desde 2018 até os dias de hoje. A Resistência e parte da esquerda erram ao tratar a doença apenas pelo sintoma, ignorando as condições que propiciam seu desenvolvimento. Ao invés de olhar para o crescimento da extrema direita e, a partir deste fenômeno, explicar todas as mazelas da crise multidimensional em que vivemos, deveríamos ir à raiz do problema e enfrentar as causas.


Assim, compartilhamos das teses – nada novas nem tampouco originais – que consideram que a crise de 2007-2008, em sua dimensão econômica, possui desdobramentos determinantes até os dias de hoje. Derivam daí o conflito comercial entre Estados Unidos e China, a ofensiva imperialista em marcha na América Latina e a estratégia de recolonização dos países da periferia do capitalismo, o crescimento da dívida global, entre tantos outros efeitos produzidos por essa “Grande Recessão”.


Por outro lado, a crise do capitalismo global tem a dimensão política que se expressa não somente no que chamamos de “fim do consenso globalizador neoliberal” ocasionando divisões entre as frações da burguesia e os conflitos geopolíticos. Assim, há também uma crise da democracia burguesa, expressa em crise de “representação” e desconfiança de massas em relação às instituições. A ideia de crise de hegemonia de Gramsci e o “interregno”, onde coisas terríveis podem surgir, mais uma vez se demonstrou extremamente útil para interpretar a realidade.


Há ainda uma ofensiva ideológica da burguesia em nível mundial para conter a crise combinada com a redução em maior grau do Estado como mantenedor do público, isto é, do Estado como salvaguarda do setor privado, combinado com a financeirização da economia, retirada de direitos trabalhistas, previdenciários. Essa ofensiva é combinada com o surgimento de uma nova subjetividade, aquela pautada pela competitividade, na qual o sujeito entende-se como “empresário ou governo de si mesmo”. Tudo isso é agravado pela emergência climática, que enfrenta negacionismos tanto da extrema direita quanto dos neoliberalismos progressivos, que em muito não se diferenciam da política (neo)extrativista sobre países de economia primária, dependentes e exportadores de commodities, como o nosso.


Sem começar pela constatação óbvia de que a classe trabalhadora vive uma situação de empobrecimento, tendo atravessado anos terríveis no contexto pandêmico de retorno da extrema pobreza, com expectativas frustradas com os governos tanto de direita quanto “progressistas”, não é possível explicar a corrosão do centro e as alternativas de extrema direita no mundo, quiçá como combatê-las.


Recentemente o companheiro Henrique Canary escreveu sobre o tema [13], negando que a extrema direita tenha ocupado um espaço antissistema. São dois os argumentos principais, à parte a política (que tratarei mais adiante). O primeiro, é que a extrema direita cresceu justamente sobre os setores mais reacionários e conservadores, portanto setores “não radicais”. O segundo, é que não há espaço para que a esquerda seja antissistêmica, pois o que está colocado são lutas defensivas e mínimas, a exemplo da luta contra o PL do estuprador [Projeto de Lei 1.904/2024, que buscava equiparar o aborto ao crime de homicídio]. Argumento semelhante foi utilizado por Valério Arcary no texto “Três táticas: frente ampla, unidade da esquerda ou ofensiva antissistema?” [14]. Arcary não argumenta, como Canary, que neste momento há espaço apenas para reivindicações mínimas, mas seguindo o mesmo raciocínio, faz uma caricatura de seus oponentes no campo da esquerda revolucionária argumentando que a “a esquerda mais radical (…) defende a necessidade de uma tática ofensiva, ou seja, programa máximo” [15]. Daí em diante segue argumentos semelhantes aos de Canary, de que a correlação de forças entre as classes é defensiva – coisa que nenhuma organização séria questiona – e que Bolsonaro ameaça as conquistas democráticas conquistadas nos últimos anos, e não o sistema capitalista.


Que a extrema direita não é antissistêmica, de fato, mas a última arma da burguesia em seus momentos de crise, é parte da interpretação histórica na tradição trotskista [16]. O que os dirigentes da Resistência parecem esquecer, no entanto, é que diante do arruinamento da pequena burguesia, este setor economicamente dependente e politicamente atomizado, busca por uma direção e, na ausência de um programa de ação claro por parte das direções proletárias, pode ser iludido pela falácia fascista [17]. Ou seja, o único antídoto contra o fascismo – e o mesmo vale para a extrema direita do nosso tempo – é que a esquerda confie em suas próprias forças, não tenha medo de dizer o seu nome e apresente o seu programa de transformação radical. Apenas assim a esquerda pode evitar – o que para Canary parece inevitável – a hegemonia do fascismo.


Canary, portanto, se equivoca ao igualar o espaço para radicalidade com o programa da esquerda (como se dissesse “estes setores defendem ideias conservadoras, portanto jamais seriam ganhos para a radicalidade da esquerda”), ignorando o fato de que esta radicalidade pode muito bem ser canalizada à extrema direita. Para quem tem dúvidas sobre a radicalidade no discurso da extrema direita, vejam Georgia Meloni criticando o colonialismo francês na África [18], para citar apenas um exemplo. Canary parece se esquecer, neste texto, do Programa de Transição, ao defender apenas as reivindicações mínimas sob a justificativa da correlação de forças desfavorável à classe trabalhadora.


Já Arcary, corretamente, defende que a esquerda socialista deve apresentar um programa de transição, nem mínimo, nem máximo, e se inspirar no exemplo francês liderado pela França Insubmissa e pela formação da Nova Frente Popular, que derrotou a extrema direita e se tornou a principal força política nas últimas eleições na França. A contradição de Valério é que, na hora de traçar um paralelo entre a disputa destas supostas três táticas com a situação brasileira, Valério diz localizar-se entre os que estão aplicando política semelhante à da França Insubmissa no Brasil, nem quietista e nem ultra esquerdista. Ledo engano! Valério, Canary, a Resistência e todas as correntes que atualmente se localizam no campo majoritário do PSOL, na verdade, estão aderindo à política frente amplista do PT e, certamente contra suas próprias intenções, pavimentando o caminho para um destino à la Estados Unidos e não à la França nos próximos anos. Esse giro oportunista em nome da Frente Única será demonstrado a seguir.


Uma análise unilateral da situação política mundial


A evolução das posições da Resistência, desde a sua fundação até os dias de hoje, foram extremamente contraditórias. Aqui não se trata da contradição dialética fundamental para a noção de totalidade em uma perspectiva materialista histórica, mas marcadas pela incompatibilidade entre ideias divergentes sob um mesmo guarda chuva, de modo que a revisão de suas posições fundacionais se deram não pela negação aberta das posições passadas ou pelo balanço franco, mas pela falta de coesão ideológica perceptível a qualquer leitor assíduo do Esquerda Online.


Alguns foram os elementos de análise que a Resistência cristalizou ao longo dos últimos anos, sendo mobilizados para justificar sua atual política. O primeiro, é uma análise unilateral e catastrofista sobre a situação política mundial, onde são consideradas apenas as características regressivas e a ascensão da extrema direita mundial. Nesta análise, não só as causas que levam à ascensão da extrema direita são frequentemente omitidas como qualquer contradição – tais como lutas populares, derrotas eleitorais da extrema direita – tornam-se difíceis de serem explicadas dentro deste esquema. Em decorrência da ascensão da extrema direita mundial, surge outro elemento, para a Resistência, fundamental para compreender o período histórico em que vivemos: a recomposição da força das direções tradicionais da classe trabalhadora. Argumentam que, apesar de esta não ser sua vontade, é um fato que a reorganização da esquerda sofreu com a recomposição das antigas direções, diminuindo o espaço para a esquerda radical. Todos estes elementos, claro, estão inseridos dentro de um cenário maior de retrocesso político e subjetivo na consciência da classe após a restauração capitalista.


Todas essas premissas são parte da realidade: ascensão da extrema direita, a recomposição das antigas direções e os retrocessos que derivaram na grande derrota que significou o fim dos antigos estados operários. São unilaterais, porém, porque dão conta apenas de parte da realidade. Se é verdade que características do período de triunfo do neoliberalismo e da crise estratégica das organizações revolucionárias no mundo permanecem, é verdade também que o período pós 2007/2008 tornou a realidade muito mais contraditória.


De um lado, surge o neofascismo, não como fenômeno passageiro, mas como uma força política resiliente e inconteste na Itália, França, Estados Unidos, Brasil, Polônia, Hungria, Finlândia, Suécia, Chile, Peru… e ainda em dinâmica de crescimento. De outro, diferentes ciclos de lutas quebram a estabilidade precendente, tais como a Primavera Árabe, Ocuppy Wall Street, Indignados, Geração à Rasca, Junho de 2013, Black Lives Matter de 2010 a 2013 e posteriormente as mobilizações na América Latina como o estallido chileno, mobilizações no Equador, Peru, Bolívia e os protestos antirracistas que se espalharam dos Estados Unidos para Europa, Austrália, Coréia do Sul e Japão entre 2019 a 2020, apenas para citar alguns exemplos.


Do mesmo modo, ao mesmo tempo em que há a recomposição de antigas direções (vide vitória do PSOE na Espanha em 2019, recomposição do PS em Portugal, vitória do peronismo na Argentina em 2019, retorno do PSD ao governo da Alemanha em 2021 e volta do MAS ao governo boliviano em 2020), também há fenômenos que apontam para a possibilidade de um processo de reorganização que gere alternativas à esquerda das velhas direções, ainda que tenham também seus limites tais como Boric no Chile (2021), Pedro Castillo no Peru (2021), Petro e Francia Marquez na Colômbia (2022), AMLO e Sheinbaum no México (2018/224). Além destes, houve também fenômenos ao redor de Sanders e Alexandria Ocasio Cortez nas eleições de 2016 e 2020 nos EUA e também Corbyn no Reino Unido, de 2015 a 2020, e outras experiências anteriores como o Podemos e o Syriza, que ascenderam como expressão distorcida de fenômenos progressivos e foram posteriormente derrotados. Menos do que caracterizar cada uma destas alternativas, seus limites e diferenças entre si, importa aqui apenas constatar que todos estes fenômenos foram expressão, ainda que distorcida, de processos reais de mobilização que impulsionaram a reorganização à esquerda.


Por fim, a história não é linear, e traçar um fio de continuidade mecânico entre os anos 1990 com os dias atuais faz com que características centrais sejam secundarizadas, apenas para que caibam em um certo esquema. Se é verdade que seguimos numa quadra de crise estratégica profunda, é verdade que também não vivemos mais o triunfo do neoliberalismo, senão o seu período de crise, cujos sintomas são a divisão da burguesia, os conflitos interimperialistas e a crise de hegemonia. Este novo momento, longe de nos levar inevitavelmente a saídas progressivas, impõe a disputa programática e estratégica como uma necessidade, abrindo, portanto, possibilidades.


Da Frente Única à Frente Ampla


Deriva desta análise internacional unilateral e catastrofista, que na verdade busca explicar o mundo a partir da trágica situação brasileira, a política de impulsionar a construção da Frente Única, elevada para a Resistência de tática à estratégia, na prática. São inúmeros os problemas na aplicação desta política, elenco alguns.


Em primeiro lugar, a tática de Frente Única é válida e está entre o arsenal de táticas da tradição marxista-leninista-trotskista. Porém, a Resistência faz um verdadeiro revisionismo sobre a Frente Única, que em nada tem a ver com os escritos de Trotsky dos anos 1930 no enfrentamento ao nazi-fascismo. Sob a justificativa de que “a realidade hoje é totalmente diferente”, a Resistência, na verdade, descaracteriza a FU para justificar o seu oposto: a Frente Ampla.


Na concepção de Frente Única da Resistência, não há enfrentamento com as direções traidoras, não há disputa programática, não há sequer uma ação comum e, em hipótese alguma, jamais considera-se a possibilidade de uma ação independente no marco da construção da Frente Única. Sendo assim, a Frente Única da Resistência é uma unidade vazia. A unidade pela unidade, independente do programa, da ação e das tarefas colocadas para a luta de classes a cada momento. Sendo o PSOL minoria nesta frente, resta ao PSOL apenas aderir, nestas condições [19]. Trata-se, portanto, de uma unidade incondicional, levando à renúncia de bandeiras históricas em nome da tática da Frente Única. Assim se deu, por exemplo, quando o Afronte, movimento de juventude animado pela Resistência, apresentou no Congresso da UNE de 2022 a resolução de conjuntura com o campo majoritário da UNE, o qual não incluía reivindicações como a demarcação de terras indígenas, a luta contra o arcabouço fiscal e até mesmo a defesa de prisão para Bolsonaro.


Nos últimos dois anos, a Resistência também protagonizou uma relocalização no movimento sindical e estudantil, passando a compor chapas para disputa pela direção das entidades com os setores governistas, em nome da Frente Única. Esta localização não se deu durante o governo Bolsonaro, o que poderia ser mais justificável, pois, em tese, toda a oposição de esquerda ao governo encontrava-se nas mesmas trincheiras na luta pelo Fora Bolsonaro [20]. Agora, porém, as diferenças políticas são evidentes e de ordem prática: tratam-se de setores que defendem acriticamente o governo responsável pela privatização dos presídios, pelo Novo Ensino Médio, entre outros ataques já mencionados.


A incoerência em compor chapas com setores governistas para a disputa das entidades sindicais e estudantis, no entanto, se dá, sobretudo, por sua justificativa: para a Resistência, não se trata de uma decisão tática, imposta por circunstâncias específicas de tais categorias, mas sim um compromisso com a aplicação da tática da Frente Única. Novamente, a tática ganha um lugar de “tática privilegiada”, o que contradiz o próprio conceito. Afinal, se determinada posição não é flexível e circunstancial, não estamos falando de tática mas sim de princípios.


A pior distorção no conceito de tática de Frente Única por parte da Resistência, no entanto, é quando esta culmina, ao final, em seu exato oposto: a tática da Frente Ampla. Passadas as eleições de 2022, foi surpreendente ver muitos dirigentes defendendo que a Frente Ampla foi necessária para derrotar o neofascismo no Brasil. Assim, com a aparência de uma mera constatação eleitoral (a vitória da chapa Lula-Alckmin sobre a candidatura de Bolsonaro), o que se vê é uma revisão da tradição marxista-leninista sobre a constituição de Frentes Amplas para combater o fascismo, o que não passou à prova da história nem mesmo nas experiências recentes.


Não foi diferente o processo que levou Marta Suplicy à ocupar a vice na chapa com Boulos para a disputa pela prefeitura de São Paulo [21]. Evidentemente, nas eleições que ocorrem neste momento, todos os setores democráticos devem votar e fazer uma campanha militante pela eleição de Boulos/Marta, assim como elegemos Lula/Alckmin, não devendo ser poupados esforços para vencer Nunes e Pablo Marçal na maior capital do país. Esta luta política não deveria dar o direito, justamente por nosso compromisso com a classe trabalhadora, em normalizar o “esquecimento” de Marta como uma das maiores defensoras do golpe de 2016, transformando-a na grande referência para a população periférica, alimentando a ilusão no legado de uma Marta que já não existe mais.


Para não restar dúvida sobre a defesa política que a Resistência tem feito de frentes amplas eleitorais, Valério Arcary publicou um texto recente sobre as eleições de São Paulo, no qual afirma:

Mas seria um grave erro não compreender que somente com o voto da esquerda não é possível vencer. E não haveria tempo para “fazer a curva” em duas semanas de segundo turno. Boulos já fez um reposicionamento de imagem para diminuir a rejeição. Ela é muito grande porque há vinte anos Boulos tem a trajetória de um lutador popular. Se Boulos se apresentasse com o rosto das eleições de 2020, o animador do MTST, a eleição estaria perdida. Não é somente porque é candidato de uma coligação, embora isso seja importante. Acordos devem ser cumpridos. Sem o apoio de Lula é impossível vencer [22].

Ou seja, para Valério as inflexões políticas e programáticas da campanha Boulos – as quais, evidentemente, incluem a aliança com Marta, até ontem do MDB, o rebaixamento programático e a tentativa de dissociar a imagem de Boulos como uma liderança de movimento social – são uma necessidade para vitória. Assim, contradiz a si mesmo quando utilizou, em artigo já citado, a condição de vitória da esquerda nas eleições francesas. Claro, não será possível vencer e eleger Boulos prefeito somente com o voto da esquerda. Porém, deveríamos apostar que é possível vencer com o programa da esquerda, tal como ocorreu com a eleição da Nova Frente Popular (NFP) na França. “Vencer” à revelia do programa, não deveria ser uma opção para quem se diz revolucionário.


Na verdade, ao preocupante crescimento nas pesquisas de Pablo Marçal [23], até então considerado apenas uma figura excêntrica sem chances reais nas eleições, demonstra como um verdadeiro bandido pôde ascender sendo identificado como um candidato radical de extrema direita [24], desrespeitando todas as legislações eleitorais e se colocando como “outsider”. Diante da trágica possibilidade de ter São Paulo liderado por um tipo como Marçal, a pior estratégia possível é fugir do enfrentamento, acreditar em uma suposta desidratação ou despolitizar a campanha justamente quando aumenta a polarização eleitoral.


O que se repete, à exemplo do governo Biden-Kamala Harris nos Estados Unidos, é a evidência de que o rebaixamento programático — uma imposição pela conformação de frentes policlassistas — alimenta frustração, pela incapacidade de um programa para as grandes elites contemplarem as necessidades dos trabalhadores, jovens e, principalmente as parcelas mais oprimidas, diante da crise multidimensional em que vivemos.


A partir do momento em que o novo progressismo passa a ser, assim como os velhos reformistas em período de crises, identificados com o establishment, é alimentado o terreno fértil para o crescimento das ideias fascistas com seu discurso “antissistêmico” [25].


Capitulação ao lulo-petismo em nome de “não nos isolar das massas”


A política aplicada pela Resistência com relação ao lulo-petismo mudou de qualidade nos últimos dois anos, a partir das eleições que levaram ao governo Lula III. Até então, a corrente defendia a necessidade de construir a tática da Frente de Esquerda na luta e nas eleições, sem alianças com a direita, exigindo que a candidatura Lula assumisse uma vice dos movimentos sociais. Esta tática, independentemente dos debates táticos acerca das eleições naquele momento, era válida e mantinha-se no marco da estratégia de tirar Bolsonaro da presidência, defendendo um programa de esquerda.


A situação muda de qualidade quando se confirma a Frente Ampla, com características de unidade nacional, que levaram à composição de Lula com Alckmin, que dispensa caracterizações. Naquele momento, era nítido que o voto em Lula era necessário para derrotar eleitoralmente Bolsonaro, mas que a perspectiva seria de reedição dos governos de conciliação de classes, que levaram à ascensão da extrema direita no país. Diante das afirmações por parte do governo, de que era “preciso trocar teto por nova âncora aceita na Faria Lima” [26], estava explícito o caráter de classe do governo e o que tendia a nos esperar nos anos seguintes, sobretudo dada a situação de crise econômica em que vivemos. A adesão acrítica à campanha de 2022 por parte da Resistência e seus parlamentares é parte de uma armação revisionista que tem consequências graves na política da corrente hoje.


Os camaradas da Resistência poderiam argumentar, claro, que ali se tratava das eleições mais importantes da nossa geração. Ocorre que agora, em 2024, já não estamos sob o governo Bolsonaro. Vimos o governo implementando o Arcabouço Fiscal, uma medida comparável apenas ao Teto de Gastos do governo Temer; atravessamos uma importantíssima greve das Universidades e Institutos Federais, enfrentando a linha dura do governo; ao lado das empresas-aplicativo que superexploram a força de trabalho, o governo apresentou o PL1204 que significa um retrocesso trabalhista aos trabalhadores plataformizados e aos próprios direitos da CLT, como o salário mínimo; nesta semana, foi anunciado um corte de mais de R$5,5 bilhões na saúde e educação, reforçando o compromisso do governo com a austeridade fiscal.


Diante disso, o que tem feito a Resistência? Corretamente, se posicionaram contra o Arcabouço Fiscal [27], mas apoiaram a Reforma Tributária [28], criticando os deputados do PSOL que não votaram a favor da medida. São inúmeros os camaradas combativos que estão na Resistência e participaram da greve das federais, mas a corrente não assinou o manifesto contra o PL da Uber, após quase um mês sem se pronunciar publicamente sobre a medida que tramitava em regime de urgência. Nas redes sociais, parlamentares tiram fotos com Haddad, o ministro do arcabouço fiscal, e no 1º de maio, o dia tradicional de luta dos trabalhadores, lá estava a Resistência com seus parlamentares, tirando fotos com o presidente no palco em que era vetado manifestar solidariedade à greve das federais.


Reorganização pela direita versus reorganização pela base


O PSOL sempre teve, desde sua fundação, um setor que reivindica o Programa Democrática Popular, buscando reeditar a experiência petista. Isso é parte das características do partido que, também desde o seu início, se propunha a ser uma frente, nos moldes dos partidos amplos. A Resistência entra no PSOL em um contexto em que este setor reformista já era parte de sua direção e, como já citado, dizíamos: “não trilharemos este caminho”. Bem, não é preciso muito para constatar que quem mudou de posição foi a Resistência, e não a direção majoritária do PSOL. Tampouco a realidade mudou a ponto de impor “a reedição da experiência reformista do PT” como uma necessidade.


A análise da Resistência para justificar sua política no terreno da reorganização é a de que com o aprofundamento da correlação de forças desfavorável à classe trabalhadora, ocorreu um fenômeno de recomposição do PT. Assim, alguns dirigentes chegam a conclusão de que o “espaço à esquerda” na reorganização já se fechou. Portanto, o que houver de reorganização hoje, será à direita do PSOL. Com esta análise, concluem que o desenvolvimento da reorganização se dará prioritariamente sobre as bases petistas e é aí que entra “A estratégia Boulos” [29]. Este texto de Arcary é exemplar sobre a visão da Resistência sobre o processo de reorganização da esquerda brasileira.


Nele constam as ideias de: a) hegemonia do lulo-petismo, como uma força “avassaladora”; b) a resiliência do lulismo associada à experiência interrompida pelo golpe de 2016; e, curiosamente, de que c) “o apoio a Lula tem dimensão programática, mas o voto em revolucionários para a presidência de um sindicato ou para parlamentares é pessoal.” e, por fim, que d) Boulos é uma exceção, porque superou o PT em SP, residindo aí o seu caráter estratégico.


Ou seja, para Valério Arcary e a Resistência, a política atualmente implementada por eles e sua localização no interior do PSOL justifica-se pelo fato de que o PT possui uma hegemonia sobre a classe trabalhadora que somente pode ser superada “quando forem esgotadas todas as expectativas em soluções negociadas” [30] por parte dos trabalhadores. Assim, atribui à subjetividade da classe o motivo de sua capitulação ao lulo-petismo. Como se não pudéssemos disputar esta consciência, concluem que nosso programa só poderá ser disputado quando se dissipar as ilusões reformistas.


A ideia de que o voto em Lula foi programático é totalmente falsa. Às vésperas das eleições de 2022, toda a imprensa noticiava a ausência de programa da candidatura Lula [31], a falta de definições sobre economia [32] e a ausência de um plano de governo mesmo após o 1º turno [33] . Esta foi a forma que o PT conseguiu construir uma frente amplíssima, do PSOL à Alckmin. Evidentemente, se o Arcabouço Fiscal tivesse sido apresentado durante a campanha eleitoral, por exemplo, poderia-se gerar uma crise com o eleitorado à esquerda, bem como qualquer sinalização programática em sentido oposto, como, hipoteticamente, a defesa da legalização do aborto, desagradaria o eleitorado à direita e sua superestrutura correspondende. Por este motivo, a exigência que a Resistência faz de “Lula, cumpra o programa das urnas” não faz sentido algum. Todos sabemos que o voto em Lula foi um voto para tirar Bolsonaro da presidência. Nenhuma linha de programa moveu os eleitores senão a necessidade imediata e urgente de tirar Bolsonaro do poder, como fizemos corretamente.


Agora, para concluir esta análise, impressiona as voltas que Valério Arcary dá para sua análise-justificativa. Para ele, não só o voto em Lula é programático como o voto em revolucionários do PSOL é “pessoal”. Ou seja, segundo ele, quando votam em uma deputada como Sâmia Bomfim, em nada tem a ver com as lutas travadas em defesa do aborto legal, contra os cortes de gastos nos serviços públicos, a defesa do MST contra os bolsonaristas e outros. Claro que para Valério o voto em Sâmia é “pessoal”, afinal, se não fosse, como justificar o espaço para ideias radicais em um contexto tão adverso e com tamanha hegemonia do lulo-petismo no espaço à esquerda?


Compartilho de uma visão totalmente distinta sobre o processo de reorganização. Entendo que a reorganização da esquerda brasileira, ou seja, o seu processo de transformação tendo em vista a superação (pela esquerda) das ferramentas forjadas no ascenso operário da década de 1980 — hoje já assimiladas pela estrutura do Estado — é um processo que está em curso. A reorganização da esquerda no Brasil pode ser menor ou mais lenta do que gostaríamos, mas existe, e se expressa nos processos de mobilização que passaram por fora da hegemonia petista. Junho de 2013, ocupações de escola em 2016, greve geral de 2017, tsunami da educação em 2019, ascenso antirracista e o Breque dos APPs em 2020, o anual acampamento Terra Livre que em 2021 reuniu mais de 7 mil indígenas de todo o país; marcha transmasculina neste ano, além de inúmeras greves, lutas territoriais e cotidianas que tem sido protagonizadas por jovens, precários, negros e mulheres.


Resgatar a capacidade de imaginar e criar um mundo ecossocialista


Olhando para trás, com a ajuda do tempo, é nítido hoje como a Resistência abandonou abertamente pontos centrais de sua constituição fundacional. Os mesmos que diziam que jamais estariam com a direção majoritária do PSOL, que buscava reeditar a experiência petista, não só mudaram de lado como se tornaram os maiores defensores desse “campo” político em um momento em que a independência política do PSOL nunca esteve tão ameaçada.


Este giro abrupto é justificado em nome do combate à extrema direita, mas, na prática, a dependência que esta corrente estabeleceu para com os seus aliados do PTL [PSOL de Todas as Lutas, bloco das correntes majoritárias do PSOL] a impede de ser consequente com essa tarefa, estratégica e decisiva para o futuro da classe trabalhadora, em nome de manter relações diplomáticas com setores que atualmente se movem por interesses pragmáticos na ocupação de espaços na institucionalidade.


Ainda assim, não está respondida a questão: como a esquerda brasileira morre? Em primeiro lugar, a esquerda deixa de cumprir o seu papel histórico quando se torna o establishment de um regime em crise e sem lastro social. Até aí, porém, não estamos falando de nada novo ao tratar do reformismo tradicional. O que é devastador e sintomático da crise estratégica que atravessamos, porém, é quando as organizações revolucionárias abrem mão de disputarem o seu programa sobre a realidade — o que inclui valer-se de toda a flexibilidade tática necessária — em prol da expectativa fracassada sobre uma possível volta ao passado.


Partir da ideia de morte da esquerda não significa, neste texto, de maneira alguma negar a necessidade histórica da disputa por um programa radical atrelado à uma prática revolucionária. Pelo contrário, reconhecer a crise é só o primeiro passo para sua superação. Não se trata também de negar a existência de uma militância abnegada que hoje atua no interior de movimentos sociais e organizações políticas de diferentes matizes, dos leninistas aos autonomistas, passando pelas mais variadas gerações.


Por outro lado, parte-se sim de uma constatação que se hoje nos encontramos em um cenário de enorme desconfiança com relação às organizações políticas isso se deve, entre outros fatores, ao fato de a maior parte das organizações reconhecidas publicamente como “esquerda” terem praticamente se fundido com o regime e suas instituições, se contentando em administrar a crise e sendo incapazes de vocalizar as reais demandas de uma sociedade que urge por saídas, sendo as forças dissonantes minoritárias para o estabelecimento de um projeto contra-hegemônico, tal como o momento exige.


Passa, também, por uma incapacidade de, como dizia Lênin, os revolucionários estarem tão ligados às massas ao ponto de fundir-se com elas. Hoje vivemos uma situação de enorme distanciamento de grande parte das organizações políticas de esquerda com relação às necessidades urgentes dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, de toda uma camada do ativismo que atua em suas frentes sem encontrar um correspondente destas lutas na superestrutura.


As tentativas, nesse sentido, muitas vezes se dão mais pela forma do que pelo conteúdo, vide a instrumentalização grosseira de demandas relacionadas ao reconhecimento/identidade para fins eleitorais; os lenços verdes desacompanhados de coragem para pautar na sociedade a necessidade de legalização do aborto; a falta de exigências pela ruptura das relações diplomáticas do Brasil com o estado sionista israelense e o baixo engajamento da militância nos atos contra o genocídio em Gaza, por correntes que supostamente defendem a causa palestina.


A extrema direita é uma força real em nosso país e no mundo, se alimenta do movimento fascista constituído desde 1930 e ganha força ao ocupar o espaço dos partidos tradicionais de direita. Trata-se de um programa contrarrevolucionário, sem nenhum compromisso com as instituições do regime e sem medo de agitar abertamente seu programa que combina o que há de mais reacionário em questões democráticas com o aprofundamento de uma economia neoextrativista e neoliberal. Encarar a necessidade defender um programa radical de ruptura pela esquerda é ser consequente com esse diagnóstico. Subestimam a extrema direita aqueles que acreditam que apenas dentro do jogo performático eleitoral derrotaremos a estratégia que mira para nossa própria destruição.


Nossa geração nunca esteve tão convocada, em sentido prático e urgente, a superar o modo de produção capitalista e suas forças destrutivas sobre a humanidade e a natureza. A crise de programa e prática dos partidos de esquerda deve dar lugar a projetos verdadeiramente contra-hegemônicos [34] que retomem o horizonte revolucionário, a confiança na soberania popular e persigam uma estratégia ecossocialista, buscando renovar a noção de partido inspirada nos movimentos do nosso tempo (sendo partido-movimento em seus múltiplos sentidos). Abandonar a autoproclamação é tão necessário quanto assumir a morte da esquerda, porque — como bons marxistas, somos materialistas — se um novo projeto revolucionário pode surgir e apresentar um horizonte de futuro aos de baixo, virá não apenas da força de nossas ideias, mas a partir das experiências, movimentos sociais e organizações revolucionárias existentes.


Vanessa Monteiro é mestre em Antropologia/UFF e educadora popular no Cursinho Popular Transformando


Notas

[2] A exemplo do texto publicado por Valério Arcary:https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-esquerda-brasileira-morreu/

[3] Sobre a importância da polêmica ver O papel da polemica em Lênin: https://traduagindo.com/2021/08/13/vladimir-ilich-lenin-sobre-o-papel-da-polemica/

[5] Como minha experiência política se deu na trajetória que deu origem ao MAIS e não tive uma experiência de militância compartilhada com a ex-NOS antes da fusão, não irei desenvolver no texto uma caracterização mais precisa sobre este agrupamento e nem mesmo suas origens. Creio que vale registrar, ainda assim, que a NOS era um agrupamento combativo, já localizado no interior do PSOL, sendo que parte de sua coluna de quadros esteve entre aqueles que participaram do partido desde a sua fundação. Antes da fusão que deu origem a Resistência, a NOS se localizava no interior do PSOL na construção de um terceiro campo, sendo parte da oposição à direção majoritária do partido. No movimento social, a NOS animava a construção de uma Frente de Esquerda, o que teve repercussão sobre a vanguarda, sobretudo no Rio de Janeiro.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] “Defendemos a unidade deste terceiro campo também nas eleições municipais de 2016. Propomos ao PSTU, ao PSOL, ao PCB, às organizações políticas que não possuem legalidade e aos movimentos sociais a construção de uma Frente de Esquerda e Socialista, com um programa de ruptura com os planos de ajustes que são aplicados por todos os governos e prefeituras. Nos colocamos desde já a serviço dessas grandiosas tarefas.” — manifesto “É preciso arrancar alegria ao futuro”.

[15] Idem.

[16] TROTSKY, L. “O único caminho” (“Burguesia, pequena-burguesia e proletariado”). Op. cit., p. 290-293.

[17] “Os pequenos burgueses desesperados vêem no fascismo, antes de tudo, uma força que combate o grande capital, e acreditam que, diferentemente dos partidos operários, que trabalham somente com a língua, o fascismo utilizará os punhos para impor mais “justiça”.(…) O fascismo unifica e arma as massas dispersas; de uma “poeira humana” – segundo nossa expressão – faz destacamentos de combate. Assim, dá à pequena burguesia a ilusão de ser uma força independente. Ela começa a imaginar que, realmente, comandará o Estado. Não há nada de surpreendente em que essas ilusões e esperanças lhe subam à cabeça! Mas a pequena burguesia pode também encontrar seu chefe no proletariado. Assim o demonstrou na Rússia e, parcialmente, na Espanha. Tendeu a isso na Itália, na Alemanha e na Áustria. Infelizmente, os partidos do proletariado não estiveram à altura de sua tarefa histórica. Para atrair a pequena burguesia, o proletariado deve conquistar sua confiança. E, para isso, deve começar por ter confiança em suas próprias forças. Precisa ter um programa de ação claro e estar determinado a lutar pelo poder por todos os meios possíveis.” (TROTSKI, L. Aonde vai a França?, 1935)

[19] Para não tornar o texto muito extenso e maçante não entrarei em citações sobre a Frente Única, mas a leitura das Teses Sobre a Frente Única, aprovadas no IV Congresso da IC, são indispensáveis a quem queira aprofundar o assunto. Basta uma leitura para identificar que a tática da Frente Única em nada tem a ver com a “unidade” que tanto agitam no PSOL para justificar uma linha de adesão acrítica ao petismo. Disponível em:https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1922/02/frente.htm

[20] Não vou entrar aqui no mérito sobre a indisposição das direções majoritárias em travar uma luta consequente pelo Fora Bolsonaro, para fins eleitorais.

[21] Em artigo recente publicado no Esquerda Online, se repete a prática de chamar de “Frente de Esquerda” composições que na verdade são frente amplistas, o que contribui para confundir a vanguarda e desarmar a militância sobre quais tarefas esse tipo de aliança demanda dos revolucionários. Ver aqui: https://esquerdaonline.com.br/2024/08/16/eleicoes-2024-derrotar-a-extrema-direita-com-a-frente-de-esquerda/

[30] Idem

[34 ] Sobre imaginação estratégica ver o excelente texto de Josep Maria Antentas: https://intercoll.net/Imaginacao-estrategica-e-partido-a-luta-lei-da-vida 

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