Uma resposta ao texto “Para entender as três principais polêmicas do Congresso do PSOL”
Por Vinicius Almeida*
Era uma quarta-feira quando acordei pela manhã e, ao abrir meu celular, me deparei, em um dos muitos grupos militantes que faço parte, com o link do texto “Para entender as três principais polêmicas do Congresso do PSOL”. Este texto, escrito pela companheira da corrente do PSOL Resistência Deborah Cavalcante, já era uma resposta ao texto escrito pela companheira de outra corrente do PSOL, o "Algumas palavras sobre as polêmicas que dividem o PSOL" de Camila Souza do MES. Na discussão, o partido estaria dividido entre a opção de romper com a estratégia petista de gestão do Estado burguês ou fortalecer uma frente única de enfrentamento ao fascismo no Brasil.
No texto “Para entender…” um dos fatos que mais me incomodou na discussão foi a caracterização de que um suposto campo de oposição seria representado única e exclusivamente por posições do MES, enquanto grupos como a Resistência, mesmo associados internamente ao partido e a sua direção majoritária, teriam plena independência para defesa de suas posições. Acredito que isso é, em parte, culpa de organizações que fiz e faço parte, como a própria Rebelião Ecossocialista, pois em meio a debates públicos como o exposto por Camila e Deborah, não nos posicionamos como estou fazendo aqui. Em parte, a generosidade que nos cabe em reconhecer que PSOL Popular e Campo Semente (campo composto pela Resistência) são campos distintos, caberia à companheira Deborah em reconhecer que MES e Rebelião Ecossocialista também são. Contudo, nos pontos que abordarei aqui, acredito que há acordo no conjunto da oposição à direção majoritária do PSOL, que é composta pela união entre Semente e PSOL Popular, o PSOL de todas as lutas.
Em primeiro lugar, o histórico de posicionamentos do partido colocou em choque diversos grupos que se reorganizaram, refizeram avaliações e se reposicionaram. Praticamente nenhum grupo esteve livre de equívocos e reconsiderações nos últimos dez anos no Brasil, pelo marco histórico das lutas de junho de 2013. Nesse período, por exemplo, fiz parte da organização Insurgência com a companheira Deborah, e nunca estive em uma organização com a companheira Camila. Um acerto que devemos reconhecer na Resistência (e grupos embrionários desta organização, a NOS e o MAIS) era sobre a importância de se construir a mais ampla unidade para derrotar o golpe em curso contra Dilma Rousseff e os demais ataques à classe trabalhadora, como as contrarreformas da Previdência e Trabalhista. Essa avaliação comum nos levou a construir a segunda maior tese em termos de signatáries do Congresso do PSOL de 2017, Por uma Frente de Esquerda Socialista para o Brasil, ainda composta pela NOS, MAIS, outros grupos e o Comunismo e Liberdade, corrente que eu fazia parte naquele período.
A Frente de Esquerda Socialista tinha uma proposta muito semelhante ao que o Povo na Rua se dispôs a fazer no tempo recente: compor todas as mobilizações do movimento Fora Bolsonaro, porém, sem ficar refém de esvaziamentos absolutamente previsíveis de um campo reformista e que, por ser reformista, apostaria na saída eleitoral como única possível para derrotar o bolsonarismo. Foi assim que os movimentos sociais chegaram a um estado de total paralisia no dia 8 de janeiro de 2023, quando acompanhamos pela televisão a uma tentativa de golpe civil-militar amarrados nas ilusões eleitorais do lulismo. No dia 9 de janeiro, eu estava na Cinelândia, em protesto, com o amplo campo progressista brasileiro. Sabemos, no entanto, que se um golpe ocorresse no dia anterior, pouco ou nada poderíamos fazer para resistir.
Para além das apropriações de conceitos históricos como “frente única” ou “unidade na ação”, não podemos nos engessar e estabelecer marcos de um debate concreto de conjuntura e rumos de um partido socialista transpondo tais conceitos como receitas de bolo. O combate ao fascismo é uma tarefa diária, árdua e muitas vezes inglória. Poderemos ser acusades de aliades da direita ou do fascismo, mas o que importa são nossas convicções, que devem ser coerentes a um programa revolucionário. Votamos unitariamente contra o arcabouço fiscal de Haddad, é verdade, e alguns de nossos deputades foram indisciplinades na votação da Reforma Tributária. Entretanto, temos uma direção de partido que realmente se propõe a ser independente ao Governo Lula ou a participação neste governo será entendida como uma transposição do conceito de Frente Única? Quem será que está realmente se aliando ao fascismo, o deputado Glauber Braga, que, ao justificar seu voto de abstenção na Reforma Tributária, levantou bandeiras históricas e, fundamentalmente, a questão da real progressividade da nova tributação do Estado, ou o deputado Quaquá, do PT, que votou contra a cassação da deputada fascista Carla Zambelli, uma das principais operadoras da tentativa de golpe do 8 de janeiro? Será que de forma uníssona nossas lideranças, Brasil afora e em Brasília, baterão de frente com a bancada governista quando a mesma se associar a projetos e salvar mandatos de representações parlamentares fascistas? Não é uma atuação exemplar aquela que ocorre na CPI do MST, com Sâmia Bomfim e Talíria Petrone? Seria a frente única em 2023 uma nova e sofisticada forma de dizer que não há alternativa a governos de conciliação de classes que reproduzem a política econômica neoliberal?
Para a Rebelião Ecossocialista, o que está em jogo no Congresso do PSOL é saber se em 2024 nossa campanha para a prefeitura de São Paulo será uma cópia do que foi a campanha de Lula ou será uma campanha de esquerda (e não de frente ampla, como já anunciou Guilherme Boulos na grande imprensa). Se nossa construção partidária seguirá pensando em mobilizações para derrotar o fascismo brasileiro nas ruas, nas urnas e no conjunto da sociedade civil (movimentos sociais, instituições etc.) ou se iremos aderir por completo a ilusão reformista do lulismo (inclusive com a simbólica participação do presidente da República em nosso Congresso em setembro). Em todas estas questões, o MES é um aliado, enquanto que diversos grupos que compõem o PTL, não. Devemos então ignorar esse acordo político para punir grupos que acertam hoje, em 2023, por erros no passado?
A importância da independência do PSOL toma ainda mais corpo quando nos deparamos com temas de política internacional e meio ambiente. Nos últimos dias, Lula passou vergonha com a fala do Gustavo Petro na Cúpula da Amazônia, quando o mesmo criticou duramente a exploração de petróleo na floresta tropical, dando o nome adequado de “negacionista climático” àqueles que propõem o contrário. No melhor cenário, o Governo Lula será um pouco desenvolvimentista e muito predatório, e em qualquer cenário, sua relação com a pauta ambiental será utilitária e marqueteira.
Como último tópico (e talvez o mais difícil de tratar) está o debate sobre as prefeituras e participação do PSOL no poder executivo. O partido até hoje não sistematizou um acúmulo coletivo sobre a experiência da prefeitura de Belém, que nos faz deparar com muitas contradições, inclusive colocando frequentemente a militância psolista em choque, devido a políticas de arrocho e austeridade de Edmilson Rodrigues, eleito a partir de uma chapa e plataforma de centro-esquerda do PSOL ao PDT, passando por REDE, UP e PCdoB. O que devemos esperar de uma possível vitória de Boulos em uma frente ampla, reproduzindo a aliança de Lula em 2022, segundo o próprio? Seria essa mais uma expressão de frente única pregada pela Resistência?
A nosso ver, e isso acredito que falo pela oposição a direção majoritária do PSOL, defender uma suposta frente única nos marcos que Primavera Socialista e Revolução Solidária defendem (se é que esses grupos usam o conceito) entra em profunda contradição com a proposta da Resistência em manter-se com autonomia e liberdade crítica para combater medidas regressivas do governo petista. Contradições todas as organizações estão passíveis de sofrer, por isso devemos ter cuidado em apontar contradições de outros grupos do passado, ainda que recente.
Não acredito que quando dialogo com uma militante da Resistência, trato-a como uma mera apoiadora da Revolução Solidária. Não considero a Resistência um grupo liquidacionista (e por liquidacionista entendo forma e conteúdo, a exemplo das milhares de filiações questionáveis e uma condução absolutamente antidemocrática do PSOL Popular do partido, sua completa adesão ao Governo Lula e a estratégia lulista e a intolerância partidária com grupos até mesmo participantes do PSOL de Todas as Lutas). Gostaria que organizações como MES, Resistência, Insurgência, Rebelião Ecossocialista, APS, Fortalecer o PSOL, Revolução Ecossocialista, Centelhas e LSR pudessem debater uma solução comum para a usurpação do partido pelo grupo de Boulos. Nesse cenário, estabelecer que o patamar de polêmicas no partido, em pleno 2023, se dá pela polêmica sobre o golpe de 2016 não é um problema porque negligenciamos um balanço sobre quem se equivocou nesse período, mas, sim, por chancelar uma política que discordamos hoje de grupos que acertaram no passado. Na prática, é fechar os olhos para o que pode vir a acontecer com o partido no futuro próximo. Um erro que, mesmo que revisto, pode não ser mais reversível.
*Vinicius Almeida é Professor de História do Instituto Federal do Mato Grosso e membro da CN da Rebelião Ecossocialista.
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