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Mateus de Albuquerque

Democracia ou capitalismo? O caso da isenção fiscal da carne

A recente decisão, no frigir dos ovos dos processos legislativos da Reforma Tributária, de incluir toda e qualquer proteína animal dentro do rol de itens isentos pela cesta básica[1] provocou vários questionamentos. Parte destes questionamentos deriva da inexistência de nenhuma clivagem de classe inserida nessa isenção. Ou seja, o salmão e o filé mignon estarão tão isentos quanto às carnes mais consumidas pela classe trabalhadora. O dinheiro do imposto do filé poderia ser usado para construir escolas, ou coisa do tipo. Isso sem falar em quem será isentado: os donos da multibilionária indústria da carne brasileira, que ocupam territórios inteiros do país em sua produção e tem ampla capacidade de influir em decisões políticas. Surpreende isso acontecer na exata semana em que os irmãos Batista, os famigerados proprietários da JBS/Friboi, voltaram à cena política[2]. Mais um exemplo do Robin Hood às avessas do Estado brasileiro.  


Outro questionamento erguido por esta decisão é se faz sentido isentar um setor tão prejudicial ao meio ambiente quanto à produção de carne. Segundo o Sistema de Estimativas de Emissão de Gases (SEEG) do Observatório do Clima, o setor de gado de corte emitiu 2,45 bilhões de toneladas de CO2 estimado entre 1992 e 2022, em curva de crescimento constante. Com a vida da população brasileira cada vez mais ameaçada pelas mudanças climáticas, faz sentido isentar um setor tão poluente?


Parte da resposta a isso vem pronta: o povo come carne, o povo quer carne. A percepção de que a carne é um alimento extremamente popular e que o seu acesso é associado à dignidade é demonstrado, por exemplo, na insistência de Lula, durante a campanha eleitoral, em falar na picanha mais barata. Assim, o problema da questão da carne seria um problema de democracia.  Os políticos, para proteger o meio ambiente, teriam que tomar medidas antipopulares que o sistema de escrutínio popular não permite.


Existem vários equívocos nesse argumento. Primeiro, que ele abstrai o consumo de carne das demais demandas sociais. Uma coisa é impor uma redução ao acesso de carne a uma população pobre, sem perspectivas de melhoria em suas condições de vida. É difícil imaginar que teria o mesmo impacto uma restrição desse tipo em um cenário de garantia de moradia, de alimento, de escola, de saúde de qualidade. Isso remete ao conceito, presente nos escritos de Luiz Marques[3], de decrescimento administrado, em que a humanidade exerce de sua prudência, o poder sobre os poderes, para controlar o decrescimento conforme suas demandas. Menos carne, menos indústria têxtil, menos (ou nenhum) combustível fóssil; mais comida na mesa, mais pessoas com casa, mais escolas.


O outro problema é que esse tipo de afirmativa simplesmente esquece-se de trabalhar com sua hipótese nula: os regimes capitalistas que romperam com os marcos das democracias liberais-burguesas também poluem aos montes. Podemos dizer isso das monarquias absolutas da península arábica, inteiramente sustentadas na produção de petróleo. Podemos dizer isso da autocracia russa, em que a supressão de escrutínio válido por parte de Putin não gerou, de forma alguma, demanda por decrescimento. Podemos dizer isso da China, maior parque industrial do mundo e financiadora do agronegócio genocida e poluente do Brasil.


Como está presente n’O Capital de Marx, e conforme demonstrado por Kohei Sato[4], não há escapatória sustentável no capitalismo. Isso não se dá pela ganância dos capitalistas, se assim fosse, bastaria pressioná-los para mudar. É algo maior: a autonomia da forma-valor faz com que a produção de mercadorias, que podem prover bem-estar às pessoas, não oriente o funcionamento do sistema, e sim o acúmulo de dinheiro proveniente destas mercadorias. A acumulação de torna a regra e, nessa toada, o controle racional sobre o que é produzido escapa pelos dedos. Só será possível atenuar, jamais encerrar, esse processo. E mesmo a atenuação se tornará cada vez mais dificultosa com a biosfera estressada a ponto de beirar ao colapso.


Portanto, o problema não é a democracia. Não é a demanda das pessoas. O problema é o modo de produção. É impossível decrescer nele.


Claro, o adversário invisível e não nomeado desse debate poderia responder que os exemplos históricos do socialismo também não guinaram as suas sociedades ao decrescimento. Estaria corretíssimo. A diferença aqui é substantiva. Enquanto a garantia de melhoria de vida para as pessoas sob um regime de decrescimento é logicamente impossível no capitalismo – seja ele liberal-democrático ou não – no socialismo ele é uma possibilidade. E é sob essa possibilidade que trabalhamos.


 [2] ‘Empresa dos irmãos Batista beneficiada por MP teve reuniões em ministério fora da agenda’. Folha de S. Paulo. São Paulo, 10 de jul. de 2024. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/07/empresa-dos-irmaos-batista-beneficiada-por-mp-teve-reunioes-em-ministerio-fora-da-agenda.shtml>

[3] MARQUES, Luiz. Capitalismo e Colapso Ambiental. Campinas: Editora Unicamp, 2018.

[4] SATO, Kohei. O ecossocialismo de Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2021.

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