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José Anezio

Por um antirracismo revolucionário



Devemos fazer a escolha antirracista na definição estratégica de como construiremos e realizaremos nossa revolução em América Latina, mas isso de forma alguma quer dizer que a definição estratégica antirracista seja uma opção, que possamos acatar ou negar. Pelo contrário, devemos fazer esta escolha apenas porque não podemos deixar de fazê-la, sob o risco de fantasiarmos duplamente um processo de emancipação humana. Primeiramente por causa das condições humanas objetivas de realização da ruptura revolucionária, e em segundo lugar porque não há emancipação humana sem superação da luta de raças cuja materialização é o racismo em todas as suas instâncias (e em última instância o genocídio negro).


Concretamente, organizações de vanguarda revolucionárias que pensam a classe trabalhadora como homogênea e universal e que, na intenção de negar ou não reflexões identitárias, enxergam-na como uma classe trabalhadora branca, terão dificuldades em organizar o povo. Não se trata apenas da classe fracamente organizada, mas de setores da classe sendo organizados por vanguardas conservadoras e reacionárias, que oferecem falsas soluções para os problemas imediatamente vividos pelos setores negros da classe trabalhadora.


O fascismo cresce em aceitação diante do próprio povo negro brasileiro por diversos motivos, mas para aqui fazer um bom ensaio de chave explicativa, devemos pensar que é um país em que o fim da escravidão veio acompanhado de esforços institucionais para embranquecer seu povo (inclusive ideológica e intelectualmente), e em que mesmo quando as “ciências” racistas de caráter eugênico foram contestadas por meio da comunidade científica do século XX, parte destas contestações vieram através de formulações igualmente pseudocientíficas, como a mítica e até hoje influente afirmação de que o Brasil se constituiu sobre uma democracia racial. Boa parte do povo negro sequer é instrumentalizada conceitual e ideologicamente para compreender o racismo que sofre. O discurso oficial do país nega o racismo e essa formulação tem força no senso comum e perante as classes populares.


Isso não quer dizer que o povo negro não sofra com o racismo, e que não tenha alguma consciência do que é isso, mas é uma consciência forjada do ponto de vista da branquitude. Por exemplo, a grande indignação das classes populares contra a violência crescente pode ser lida como uma canalização da supremacia branca sobre a consciência imediata dos setores negros das classes populares, no que diz respeito aos fenômenos ligados direta ou indiretamente à questão do genocídio negro. Porém essa canalização oferece às classes subalternas alternativas e soluções que na verdade não resolvem nem a questão genérica da violência e nem a do genocídio negro, na verdade são soluções genocidas, de aprofundamento do genocídio. Eu com meu celular de penúltima geração comprado caro e a prestação, passo a ter um medo de assalto que me dá a ilusão de que algo me iguala com o burguês branco e me distância do jovem negro de minha comunidade com aparência “de marginal”. Não é difícil para o ideário da supremacia branca me convencer de que bandido bom é bandido morto, que cidadão de bem deve ter direito de se armar, e etc.


Uma esquerda sem formulações palpáveis e eficazes para solucionar o problema da segurança pública jamais poderá dar uma saída antigenocida para o país e para o continente. E é preciso formular esse programa de segurança a partir da consígnia “precisamos de segurança sem violência”. Essa frase deve ser nosso principal pressuposto metodológico no diálogo com a população. Precisamos mostrar que segurança violenta não nos serve, que é uma falsa solução. É justamente a violência supremacista branca que o capital tem a oferecer como “política de segurança”, não apenas na sua ameaçadora forma protofascista, mas também nas versões liberais de gestão do estado burguês com a qual já estamos acostumados há décadas. A direita tucana e a “esquerda” petista só souberam usar a violência como instrumento para o enfrentamento à violência. Vitória genocida da supremacia branca engendrada nas estruturas do Estado burguês! Não há saída se não nos dedicarmos conscientemente a formular a ruptura com este projeto, automaticamente legitimado ideologicamente, que mente para o povo e diz que segurança pública se faz com violência (e em consonância com o mito da democracia racial, nunca diz abertamente contra qual raça essa violência deve ser aplicada, afinal, no fundo todo mundo sabe).


Dessa mesma forma, o mundo do trabalho deve ser pensado por uma vanguarda revolucionária negra, que contribua para abrir os olhos dos demais setores da vanguarda revolucionária. A chamada concepção de Raça e Classe precisa se concretizar em uma organização negra popular e sindical, mas também numa formulação teórica profunda do que é o mundo do trabalho hoje.


A articulação entre desemprego, subemprego, perda de direitos trabalhistas, sociais e previdenciários e a questão do genocídio precisa avançar em mediações teóricas. O desemprego, o subemprego e a retirada de direitos da classe são estratégias genocidas diretas e indiretas, porque matam a dignidade, mas também porque fertilizam as condições de assassinato de pessoas negras. Comunidades negras acostumadas ao que resta na pirâmide do mercado de trabalho e salários, inevitavelmente, serão comunidades ocupadas por viaturas policiais, ainda mais quando desocupadas de serviços públicos que ofereçam sequer os direitos sociais reformistas do capitalismo com qualidade digna. A insatisfação do povo negro na base dessa pirâmide e em privação de direitos diversos, que poderia se converter em indignação revolucionária, é mais uma vez canalizada pela supremacia branca através do sedutor individualismo meritocrático neoliberal, porque diz: “vença pela força!”, “se desvincular de sua comunidade e seja chefe dela (e de várias outras)!


A vontade de ser patroa e patrão, assim como a ideia de que cada um tem o que merece (seja a morte, seja o luxo, seja a pobreza, seja a vida digna), dão o tom de nossas vidas nas comunidades negras. Não que as redes de solidariedade tenham deixado de existir. Esse patamar de inexistência tornaria inviável a própria vida em territórios periféricos, mas a grande verdade é que em vários níveis essas redes de solidariedade perderam bastante terreno para os valores do neoliberalismo e para o desvinculo niilista. Se há décadas algumas organizações criminosas praticavam o tráfico com valores que conjugavam a violência como instrumento e a coletividade revolucionária (muitas vezes bairrista mas identificada com o popular, fenômeno muitas vezes atribuído ao encontro com os ditos “presos políticos” da ditadura nas prisões), hoje as chamadas facções criminosas e toda a sua cultura organizacional muito mais se assemelham a grandes empresas de franquia. A dominação de territórios, com os quais os chefes sequer têm mais identificação histórica, vale mais que a vida do povo da favela. O lucro da empresa e a ostentação no curto tempo de vida tiram a esperança de dedicação engajada a um projeto de libertação a longo prazo. Submeter todo o resto da comunidade a essa lógica é cada vez menos condenável moralmente, e até mesmo as religiões de origem africana têm sido perseguidos nesse contexto, onde o neoliberalismo, provando que tem em sua essência a missão de aprofundamento da supremacia branca, faz o povo negro se auto-odiar mais e mais. Grupos negros se enfrentam entre si, em guerras mortais que acham que são suas, e achando que são seus os lucros que ficam majoritariamente com os senhores da guerra (ainda os antigos senhores de engenho, atualizados para os padrões dos dias de hoje). A precariedade do mundo do trabalho e a retirada de direitos, como já dito, fertilizam o genocídio.


É neste contexto que vive boa parte da classe trabalhadora com a qual queremos nos organizar para a tarefa estratégica revolucionária. Um movimento sindical que não tenha profundo conhecimento teórico e prático desses elementos nunca conseguirá superar sua postura organizativa defensiva e avançar com ousadia para o ataque mortal ao capital. Um escurecimento das ideias no movimento sindical é fundamental para deixar nítido que a classe trabalhadora não se resume à parcela majoritariamente branca que hoje consegue ter vida sindicalista e até mesmo grevista ou mobilizada (majoritariamente no servidorismo público). Essa ala branca das direções e bases sindicais, aliás, é a primeira com obrigação moral de enegrecer seu pensamento estratégico com essa acertada leitura científica dos fatos sobre o mundo do trabalho.


O que a PM faz em nossas comunidades é uma expressão direta da luta de classes e ela deve ser superada em todos os campos. A prova concreta de que o avanço do projeto genocida está por todos os cantos é que nos últimos anos o índice de homicídio de mulheres brancas diminuiu alguns pontos percentuais, enquanto o feminicídio negro chegou perto de dobrar, nos últimos meses o IPEA mostra que o desemprego de pessoas brancas sofreu suave regressão, mas o de pessoas negras aumentou. A saída da crise está sendo para o povo branco, e não para o povo. Em suma, é uma saída genocida.


Esse assunto não pode ser de interesse apenas de militantes de movimento negro. Cem por cento da esquerda precisa fazer estas reflexões e aprofundá-las. A emancipação humana não é possível sem a emancipação indígena e negra, porque essas são fundamentais para a emancipação humana na América Latina, o que é fundamental para a emancipação de toda a humanidade. Mas uma vanguarda que pense as lutas num paradigma de suposta universalidade abstrata que, na verdade, apenas reflete uma particularidade branca, jamais será capaz de pensar lutas emancipatórias.


Precisamos não apenas saber que raça e classe são estruturantes do metabolismo de dominação mundial do atual sistema social. Precisamos saber o que é classe, precisamos saber o que é raça. Não será possível aprofundar esse debate aqui, mas nos tempos de confusão teórica que vivemos, inclusive sobre a questão negra, é fundamental dizermos o que já sabemos.


Nós, comunistas antirracistas, sabemos que a raça não é um fenômeno biológico, e sabemos que a nossa sociedade costuma achar que sim, porque foi sob características biológicas que a ilusão das raças foi criada. Sabemos que raças são categorias sociais, que hierarquizam grupos humanos para legitimar estruturas de dominação de uns grupos sobre os outros, assim como acontece com as classes sociais. A diferença é que não é o papel deste grupo no ciclo produtivo (produzir ou controlar a produção) que o define enquanto classe, mas sim traços biológicos de aparência e origem continental enquanto povo. Sabemos que as raças existem enquanto grupos oprimidos ou privilegiados, que a estrutura do sistema do capital é supremacista branca, que assim como o patriarcado, a supremacia branca também tem uma relação de mútua nutrição com a acumulação e expansão do capital. Sabemos muito bem que o genocídio negro é um projeto que anda de mãos dadas com a super exploração das nossas forças de trabalho, e que não só nações como a brasileira foram erguidas sob nosso sangue e suor, mas todo o mundo capitalista, através da acumulação primitiva. Então sabemos, nós que somos comunistas antigenocidas, que o racismo não é um mero instrumento utilizado pelo capitalismo, mas sim um componente central e indissociável do sistema do capital. Sabemos que não é apenas impossível acabar o racismo sem acabar com o capitalismo, mas também e igualmente, que é impossível acabar com o sistema do capital sem derrotar a supremacia branca, porque o sistema do capital e o da supremacia branca são um só e mesmo sistema.


Sabemos como opera a supremacia branca, e ela anula tudo o que lhe coloca em xeque. Põe em jogo os elementos dispostos a qualquer tipo de movimento pontual emancipatório e se aproveita do fato de estarem descontextualizados e descolados de um projeto geral de emancipação total para colocar estes elementos uns contra os outros. O capital é supremacista branco desde sua origem e adora uma vanguarda operária que ignora a questão negra, porque a coloca a serviço da submissão dos negros aos brancos, e coloca os movimentos de negritude a favor da dominação das classes proletárias pelas classes burguesas. Nossa tarefa é a elaboração e concomitante aplicação de um projeto total. A morte do capital precisa ser planejada dentro de um projeto antigenocidas, o que quer dizer anticolonialista, antieurocêntrico, antirracista, anti-imperialista, antilatifundiário, antiheteropatriarcal, antineoliberal e anticapitalista. Essas nove palavras negativas precisam ser listadas na formulação de um projeto positivo ecossocialista. A transição para o reino das e dos comuns precisa da organização de uma vanguarda negra. Vamos aceitar este convite?


José Anezio Fernandes do Vale é psicólogo, integra a escola antirracista Black Skin Community School e é militante da Rebelião Ecossocialista

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