Por Rodrigo Santaella¹ e Vinicius Almeida²
Em 22 de fevereiro de 2023 completou-se um ano desde a invasão da Rússia, comandada por Vladimir Putin, na Ucrânia. A guerra segue intensa, com estimativa de mais de 100 mil mortos de cada lado, sendo metade de civis ucranianos, numa contagem que segue crescendo, além da destruição de pontes, barragens, fábricas e milhares de residências. Não trazemos neste texto uma peça de noticiário sobre o conflito, tampouco uma demarcação de posicionamento político, mas sim uma proposta de reflexão, discussão e a proposição de alternativas sobre o tema.
Pelo olhar da imprensa capitalista, dos grandes conglomerados de comunicação e até mesmo empresas voltadas para o mercado online, parece que só há uma guerra no mundo, e esta é a que ocorre na Ucrânia. No entanto, a Palestina segue sendo massacrada por Israel, o Iêmen, Haiti, Síria e Mianmar também são exemplos de países em profundo estado de violência e beligerância. O fato de nenhuma dessas guerras ocorrer na Europa não é uma mera coincidência. O corte de raça e classe é evidente na escolha editorial da grande mídia em priorizar a cobertura do confronto militar no Leste Europeu.
Quando se condena a Rússia e Putin pela sua agressão covarde, e se esquece de Benjamin Netanyahu, por exemplo, isso não é feito aleatoriamente. Mais ainda, é preciso compreender que o sistema atual nunca prescindiu de dominação e espoliação daquelas pessoas e povos mais vulneráveis. Estamos falando de um mundo imperialista, com uma teia de relações que reproduz um desenvolvimento desigual e combinado que divide geograficamente o planeta em periferia e centro, ricos e pobres, povos submetidos e países dominantes.
Mesmo com todas essas ressalvas, o povo ucraniano, ainda que não de forma solitária, passa por grandes dificuldades devido ao seu território ser cenário de um estágio constante de terror. Sabemos disso também por informações trazidas por veículos e jornalistas que se propõem um olhar mais crítico e detalhado, que nos ajudam a pensar o conflito europeu por um outro olhar, a partir das nossas próprias tradições e fontes. São exemplos de boas fontes de informação sobre o tema a coluna de Jamil Chade, os podcasts Xadrez Verbal e o Petit Journal.
Os sites da organização internacional que fazemos parte, a IV Internacional, são nossa principal fonte de informação e referência de debate. Muito do que colocamos aqui dialoga com autores que publicam no Ponto de Vista Internacional (International Viewpoint - IVP). Ao longo do texto, citaremos algumas contribuições publicadas por lá.
As análises que predominam na esquerda brasileira sobre a guerra na Ucrânia apontam que os russos não podem ser condenados pelos ataques, reproduzindo em grande medida a narrativa falaciosa de seu líder, de que Zelensky é um líder de extrema-direita e sua aproximação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN - obrigou os russos a reagir. Neste contexto, são feitas comparações do confronto na Segunda Guerra Mundial entre a Alemanha nazista e a URSS. Essa é uma narrativa que sequer o maior aliado internacional da Rússia, a China, reproduz.
Nosso pensamento, expresso aqui, passa por não compactuar com nenhum bloco ou país imperialista. Isso significa, por óbvio, condenar a militarização do mundo promovida nas últimas décadas por EUA e OTAN, nos escombros da Guerra Fria, como mostra o brilhante artigo de Jaime Pastor Rumo a uma nova guerra global permanente? O novo conceito estratégico da OTAN, publicado no IVP.
A dura crítica ao papel do imperialismo estadunidense no mundo não nos furta, por outro lado, de reconhecer que a Rússia contemporânea não tem nenhum vestígio do que foi a União Soviética no que diz respeito a uma perspectiva socialista ou comunista. Se há vestígios soviéticos, eles estão relacionados ao processo de degeneração da revolução russa, e se apresentam no autoritarismo e na aliança orgânica entre a burocracia estatal e determinados grupos econômicos dominantes. A burguesia russa que se formou e se fortaleceu no processo de desconstrução da URSS nos anos 1990 forjou um Estado autoritário, com alto grau de corrupção e, o mais importante, absolutamente capitalista. Mais do que isso, no campo das forças políticas atuantes no capitalismo, prevalecem hoje forças de direita e de extrema-direita na Rússia. Não há, neste sentido, nenhum – repetimos, nenhum – aspecto na Rússia contemporânea digno de apoio por parte de forças ecossocialistas.
Aqueles(as) que tratam a geopolítica mundial dividida em, ainda hoje, em dois campos, como na Guerra Fria (hoje atualizada pela referência OTAN x BRICS), recorrem ao adjetivo “realista” ao justificarem o apoio à Putin, tratando a Rússia como um dos bastiões da luta anti-imperialista por estar geopoliticamente em oposição aos Estados Unidos e à União Europeia. Ora, de fato, há muitas oposições entre esses blocos, mas nenhuma delas se refere ao capitalismo propriamente dito. Neste sentido, escolher entre apoiar o capitalismo norte-americano ou o capitalismo russo em seus projetos expansionistas não deve ser uma alternativa para as e os ecossocialistas. O que prevalece para nós é a solidariedade aos povos oprimidos, aos povos explorados.
Na Rússia e na Bielorrússia, os setores da população – sobretudo da classe trabalhadora – que se opõem à guerra sofrem grave perseguição, são criminalizados, reprimidos, presos ou forçados ao exílio. É nesta chave que devemos defender, veementemente, o final de toda a repressão contra os opositores à guerra e ao governo Putin na Rússia. Apoiar a Rússia e seu governo na invasão à Ucrânia, sob qualquer perspectiva, é se colocar contra os interesses da própria classe trabalhadora russa.
Do outro lado do conflito, no país atacado e invadido, há o povo que mais sofre. Governada por um governo de direita e oportunista, composto e em diálogo com forças de extrema-direita da sociedade ucraniana, a população da Ucrânia é a maior vítima da guerra. Fora o peso das mortes, uma parcela gigantesca da população também agoniza com perdas de familiares, deslocamentos forçados, mulheres sofrem com estupro e crimes de guerra, há bombardeios em áreas civis etc. Além de toda solidariedade ao povo ucraniano, lutamos pelo fim imediato dos bombardeios russos contra a população e a garantia do abastecimento energético.
Apoiar um povo, entretanto, não pode significar nenhum tipo de negligência e ponderação sobre a caracterização do governo que promoveu um clima de beligerância. O governo de Zelensky, como dissemos, é também corrupto e de direita, se aproveita da guerra para consolidar um grupo político no poder, em conluio com os setores hegemônicos da burguesia internacional, agora já ávidos para a mina de ouro que será a reconstrução do país. A defesa da retirada das tropas russas e do direito do povo ucraniano de determinar seu próprio futuro, respeitando o direito de todas as minorias, não pode ser confundida com um apoio ao governo Zelensky.
Não há dúvidas que o contexto que gera a guerra envolve uma pressão cada vez maior da OTAN, liderada pelos Estados Unidos, na direção das fronteiras russas. Se não podemos relativizar a invasão russa, tampouco podemos nos iludir com a ideia de que as forças ocidentais não possuem responsabilidade alguma, pelo contrário. Nesse contexto, com a guerra deflagrada, os governos ocidentais aumentam seus orçamentos militares e fortalecem a retórica da militarização generalizada do capitalismo mundial. Do outro lado, as classes trabalhadoras são obrigadas a pagarem a conta da crise com suas próprias condições materiais de vida e, no caso de centenas de milhares, com suas próprias vidas.
O sofrimento do povo ucraniano tem sido usado como justificativa para o aumento contínuo de gastos militares, e o apoio internacional recebido pela Ucrânia ocorre nesse bizarro contexto. Por isso, defendemos o desmantelamento de todos os blocos militares e o corte brutal nos orçamentos militares, justamente para destruir essas estruturas propulsoras de conflitos e ameaçadoras da vida de bilhões de pessoas ao redor do globo.
Essa estrutura é a mesma que financia guerras no mundo inteiro, garantindo a opressão de povos mundo afora, como os palestinos, curdos, sírios e tantos outros. Se é nosso papel defender o povo ucraniano, não podemos em momento algum diminuir a importância de outros povos oprimidos e esmagados por guerras que, de uma forma ou de outra, atendem aos mesmos interesses capitalistas.
Nossa posição, ecossocialista e portanto, de partida, anticapitalista, deve ser contrária à guerra, à lógica militarizada do capitalismo internacional e de defesa total do povo ucraniano e de todos os povos oprimidos por guerras mundo afora. Do ponto de vista pragmático, isso por óbvio não significa apoiar a iniciativa russa. Por outro lado, tampouco pode significar a defesa de apoio militar infinito à Ucrânia, transformando o conflito em algo interminável às custas das classes trabalhadoras ucranianas e de outros países.
A única solução possível é a busca por uma paz negociada, e não há nada mais pragmático nisso. A Rússia é a maior potência nuclear do mundo, e não perderá essa guerra sem antes causar danos irreparáveis para milhões de civis na Ucrânia e, eventualmente, em outros países. A defesa do fim negociado da guerra é a única possibilidade de reduzir os danos causados e criar condições para juntar os cacos na reconstrução da organização política revolucionária das classes trabalhadoras tanto da Rússia quanto da Ucrânia.
Recomendamos que interessadxs no tema leiam o texto do Gilbert Achcar, Por uma posição anti guerra democrática sobre a invasão da Ucrânia, que destaca a forma como deve ser dada uma negociação de paz, garantindo a autodeterminação de um povo e com perspectivas de uma paz duradoura. Também em uma perspectiva ecossocialista, indicamos o texto também publicado na IVP, Apoiar a resistência ucraniana e enfraquecer o capital fóssil, de vários autores, que aprofunda a relação do conflito com as disputas em torno de combustíveis sujos. E que nossa luta internacional contra a guerra seja também um impulso a um mundo ecossocialista.
1 - Rodrigo Santaella é Professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, do Instituto Federal do Ceará e membro da CN da Rebelião Ecossocialista.
2 - Vinicius Almeida é Professor de História do Instituto Federal do Mato Grosso e membro da CN da Rebelião Ecossocialista.
Referências e indicações de leitura:
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