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Eduardo Sá Barreto

Um primeiro chamado à preparação (ou: summer is coming)

Atualizado: 6 de out. de 2023

Eduardo Sá Barreto



Dado o teor do texto abaixo, é necessário sublinhar desde já: não temos aqui um exercício de profecia. Esteja atento(a) ao uso de palavras como possível, provável, potencial, tende etc. Ou seja, o que se discute aqui não é um futuro inexorável, mas riscos.

Risco é uma medida de probabilidade e impacto. Se a probabilidade é alta e o impacto baixo, o risco é baixo e, dependendo das circunstâncias, pode ser ignorado. Se o impacto é alto, mas a probabilidade é baixa, o risco é baixo e talvez não requeira enfrentamento. No entanto, se a probabilidade é alta e os impactos são altos, o risco é alto e não deve, em hipótese alguma, ser ignorado.

No texto a seguir, procuro mapear panoramicamente alguns riscos elevadíssimos que nos ameaçam a partir do próximo verão e, no mínimo, ao longo de 2024. Sem determinismos ou certezas absolutas, os riscos são sérios o suficiente para mobilizarmos esforços de preparação de máxima escala e máxima urgência. No cenário improvável de os impactos previstos não se efetivarem no curtíssimo prazo, tal esforço colossal de maneira nenhuma terá sido desperdiçado. Os desafios delineados a seguir assolarão a humanidade antes cedo do que tarde, mesmo que porventura ainda não em 2024.

Em setembro de 1917, Lenin começa seu “A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la” da seguinte forma:

Uma catástrofe iminente se aproxima [...]. O perigo de uma grande catástrofe e da fome é iminente. Todos os jornais já escreveram sobre isso uma infinidade de vezes. Os partidos e os soviets [...] votaram um sem-número de resoluções nas quais se reconhece que a catástrofe é inevitável, que está muito próxima, que é necessário adotar medidas extremas para lutar contra ela, que é necessário que o povo faça ‘heroicos esforços’ para evitar a ruína etc. Todo mundo diz. Todo mundo reconhece. Todo mundo pensa que é assim. Mas nada se faz.[1]

É possível que em nossa cultura política de hoje Lenin fosse taxado de fatalista, catastrofista ou coisa pior. Mas não podemos nos dar ao luxo de tal postura covarde, que se abriga na fórmula do otimismo da vontade e busca conforto numa noção abstrata de paciência histórica, sem se mover para constituir as condições que, enfim, nos dariam motivos para algum otimismo.

Há muito tempo escrevo sobre riscos de longa duração, que se avolumam e se multiplicam aceleradamente no rastro da crise climática. Aqui, porém, abordarei riscos imediatos!


O excepcional 2023


O ano de 2023 tem sido um ano marcado por anomalias extraordinárias. Mesmo tendo em vista as diversas trajetórias de piora progressiva dos principais indicadores climáticos, alguns padrões atuais são excepcionais. Recordes de temperatura (globais e locais, de superfície e oceânicas) têm sido batidos por margens muito maiores do que as usualmente observadas e, por vezes, ao longo de vários dias consecutivos. Exemplos emblemáticos são os 47 dias consecutivos[2] de temperatura média global na superfície acima do recorde anterior[3] e os 58 dias consecutivos de temperatura média do ar (2m) no hemisfério norte acima do recorde anterior.

Nesse mesmo padrão de anomalias anômalas, o verão do hemisfério norte foi atravessado por múltiplas ondas de calor brutais (de 1ºC a 2,5ºC acima da temperatura média atual) em algumas importantes regiões produtoras de alimentos: China e sudeste asiático, EUA central e costa oeste, Europa continental. Para além de diversas outras ondas de calor (no norte da África, no Ártico, no Canadá etc.) e para além dos riscos à saúde normalmente enfatizados, tais eventos podem desdobrar-se em diversos cenários de insegurança alimentar global. Dependendo da abrangência e escala com que os cultivos nessas regiões tenham sido afetados, 2024 tende a ser, na melhor das hipóteses, um ano de forte inflação de alimentos. Na pior, um ano de escassez absoluta de alimentos e, portanto, fome aguda.

Os climatologistas ainda debatem as causas desse 2023 excepcional. Seria o início de uma aceleração abrupta da crise climática? Ou um efeito de choque provocado por políticas bem-sucedidas de redução de aerossóis no transporte marítimo? Ou uma mudança nos padrões de dispersão de poeira do deserto do Saara? Ou os primeiros impactos do El Niño que vem se formando no Pacífico?

Na verdade, o ritmo em que a ciência poderá responder a essas perguntas com o devido cuidado não alcança o ritmo das urgências potenciais que estão colocadas para os próximos meses. Encontrar a melhor explicação é importantíssimo, claro. Mas antes é preciso atravessar 2024. Para os desafios potenciais do próximo ano, basta sabermos o seguinte: o excepcional 2023 criou as condições para um grave 2024; e se os maiores impactos do El Niño realmente começarem a aparecer apenas em outubro (como costuma acontecer), o cenário se torna ainda mais dramático.


Os riscos aumentados do calor extremo


Julho de 2023 foi o mês mais quente do registro histórico. As anomalias no hemisfério norte nos chamam mais a atenção porque o calor extremo causou mortes e incêndios devastadores. É preciso ter clareza, porém, que o inverno do hemisfério sul também tem sido de anomalias expressivas. Na hipótese provável de tais anomalias se prologarem (ou se intensificarem) até o verão, ondas de calor como aquelas do verão no hemisfério norte podem repetir-se com intensidade semelhante por aqui.[4] Mais do que o desconforto térmico e a necessidade de intensificar a climatização de ambientes (com o consequente consumo aumentado de energia), essas ondas de calor turbinadas pelas condições únicas deste ano devem vir com riscos elevados à saúde e, no limite, à vida; principalmente para os mais vulneráveis. É fundamental organizar critérios e protocolos de paralização para que as pessoas possam buscar refúgio em casa ou em outros lugares adequadamente climatizados. As ruas asfaltadas/concretadas e pouco arborizadas e o transporte público precário das cidades brasileiras não serão lugares seguros. Não é prudente delegar ao Estado a condução dessa crise iminente. É urgente impulsionar a auto-organização.


As conhecidas calamidades... porém, intensificadas


Tragédias urbanas como inundações, deslizamentos, desabamentos, secas etc. infelizmente fazem parte do cotidiano de muitas cidades brasileiras. Há alguns anos, incêndios de grandes proporções na Amazônia e no Pantanal têm se juntado a essa rotina. Ao mesmo tempo, é notório que a nossa capacidade de resposta a esses desastres rotineiros tem sido absolutamente insuficiente e precária. É neste cenário de despreparo profundo e crônico que nos encontramos na iminência de enfrentar um verão em que essas calamidades podem ser potencializadas até níveis que ainda não experimentamos. A título de exemplo do que pode vir a acontecer, apenas nas duas primeiras semanas de setembro, chuvas e inundações catastróficas assolam simultaneamente o sul do Brasil, sul da China, Grécia e Líbia. Mais uma vez, é preciso lembrar que o Estado tem sido historicamente incapaz de organizar satisfatoriamente abrigos, evacuações, atendimentos, realocações, abastecimento. Sem a articulação e mobilização da experiência acumulada de organizações populares e sem a ampliação de sua escala de ação, protagonizando o enfrentamento desses desafios, teremos poucas chances de minimizar os impactos negativos.


Um outro patamar de insegurança alimentar


É fato bastante conhecido (e com muitos precedentes) que secas, chuvas torrenciais e ondas de calor ou de frio, dependendo de sua intensidade, duração e localização, podem dizimar plantações e até provocar quebras de safra. Nos últimos anos, Brasil, Argentina, EUA, Alemanha, França, Índia, Austrália etc. experimentaram quebras de safra de variadas magnitudes. No passado recente, a ocorrência de eventos com esse tipo de impacto tem sido predominantemente local e, portanto, ajustada pelo excesso de produção em outras regiões e/ou por oscilações nos preços. O que a crise climática traz de novo é o risco aumentado e crescente que esses eventos de temperaturas extremas ocorram em escala, frequência, abrangência e simultaneidade tais a ponto de ameaçar globalmente a disponibilidade de alimentos. O que o excepcional 2023 parece estar nos trazendo é a concretização desse risco. Conforme já mencionado, importantes centros produtores do hemisfério norte sofreram com sucessivas ondas de calor, que já podem ter comprometido cultivos importantes.

Mesmo que o próximo verão não afete da mesma forma a produção brasileira (e esse é um grande se), a possibilidade de uma forte disrupção no sistema alimentar global já está posta. EUA, Europa e China não são apenas três localizações quaisquer. Nesse grupo encontram-se as grandes potências econômicas do mundo. Se preciso for, elas irão agressivamente ao mercado garantir o seu abastecimento interno. Na ausência de políticas ativas de garantia do nosso abastecimento interno, o produto tende a ser escoado para fora, impulsionando a inflação. Idealmente, o Estado deveria garantir a plena operação dos estoques públicos de alimentos e confiscar e distribuir eventuais estoques privados utilizados para especular num mercado aquecido. Apenas quanto à primeira dessas linhas de ação é possível entreter algum tipo de expectativa positiva para a intervenção do Estado. Quanto à segunda, talvez venha a ser necessário persegui-la por fora dele.

De qualquer forma, a mera pressão inflacionária (no caso de a escassez de alimentos ser apenas relativa) impõe dificuldades graves o suficiente, mas que serão eclipsadas se o sistema alimentar global desmoronar em decorrência de uma escassez absoluta, provocada por múltiplas quebras simultâneas de safra. Num evento como esse, nossa capacidade de organização para navegar o caos social (e, eventualmente, geopolítico) precisa já estar minimamente constituída. Se não estivermos preparados, se os primeiros passos de uma mobilização forem dados apenas aos primeiros sinais contundentes da crise, teremos poucas chances de conter seus piores desdobramentos.

[1] Lenin. “A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la”. In: S. Zizek (org.). Às portas da revolução. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 77. [2] Entre 3 de julho e 18 de agosto de 2023. [3] De 14 de agosto de 2016 [4] Este texto foi escrito no início de setembro, mas no momento em que o preparo para publicação, uma onda de calor brutal está prevista para os próximos dias em todo o território brasileiro.

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